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Acordo de não persecução penal: Direito subjetivo do inculpado (?)

Nos idos de 1995, o direito penal e processual penal brasileiro foi varrido por novos ventos ante a introdução, no universo jurídico nacional, da possibilidade de resolução de algumas contendas de ordem penal antes de sua propositura1, assim como, após o oferecimento da denúncia, a interrupção de seu curso, sem admissão da culpa, mediante o cumprimento de condições2.


Mas a novel lei n. 13.964, de dezembro de 2019, trouxe ao universo penal e processual pátrio um novo instituto, semelhante ao existente nos países da common law3, estranho à filosofia autoritária, de origem fascista, na qual foi concebido o Código de Processo Penal brasileiro4, e que avança consideravelmente em comparação aos institutos da conciliação, da transação penal e da suspensão condicional do processo.


O “acordo de não persecução penal” – ANPP – estabeleceu suas diretrizes no art. 3º do referido normativo legal, onde acrescentou à redação do art. 28 do CPP, o art. 28-A, dispondo que não sendo caso de arquivamento e tendo o investigado confessado formal e circunstancialmente a prática de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos, o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal, estabelecendo a necessidade de se verificar que a medida se mostra como necessária e suficiente para reprovação e prevenção do crime.Nos seus incisos de I a V, estabelece as condições que podem ser aplicadas cumulativa ou alternativamente.


Prevê ainda, em seu parágrafo 2º, em quais hipóteses afasta-se a possibilidade de concessão.


O significado prático disto é que na iminência da denúncia, e não se tratando de situações onde os benefícios gestados na Lei dos Juizados Especiais possam ser aplicados, resta alternativa a quem está por ser alvo de acusação formalizada, sem a necessidade de submissão ao penoso processo penal.


Como se discorrerá na sequência, reconhecida a autoria/participação em atividade criminosa, admitindo-se o ilícito penal e aceitas as demais condições propostas pelo MP, será prolatada sentença homologatória pelo Juiz, passando-se à fase de execução do acordo, ao encargo do Ministério Público perante o juízo e execução penal5. Contudo, a nova regulamentação não ensejou análise interpretativa tão pacífica, já se observando diversas celeumas a resolver6.


Todavia, o enfoque deste artigo não é análise dessas diferentes correntes ou mesmo de sua aplicação no direito intertemporal (quanto a isso já existe vasta produção acadêmica), e sim a intenção de examinar e buscar os adequados efeitos da afirmação de ser possível ao MP propor o acordo.


Afinal, trata-se de uma faculdade do Promotor de Justiça ou de um direito subjetivo do inculpado?


O raciocínio inicial deve considerar quais os requisitos estabelecidos pela lei para se cogitar do benefício.


Eles partem do pressuposto de que não se trata de caso que enseje arquivamento, isto é, existem condições de oferecimento da denúncia, uma vez que há a presença de prova material (em se tratando de crime material), indícios suficientes de autoria (ou participação), aparência de ilícito penal, não se verificando a presença de causas extintivas da punibilidade, circunstâncias eximentes de pena ou excludentes de ilicitude.


Superado este primeiro passo, tem-se como obrigatória a confissão formal e circunstancial da prática criminosa investigada por parte do acusado.


Por fim, tem-se como limitador a previsão de pena mínima inferior a 4 (quatro) anos para o crime supostamente cometido.


Vai-se mais adiante no elenco de outras exigências, a saber: não se tratar de caso onde seja cabível a transação penal de competência dos Juizados Especiais Criminais; tratar-se de investigado que não seja reincidente, ou não se verificarem elementos probatórios a indicar conduta criminal habitual, reiterada ou profissional – exigência afastada no caso de se tratarem de infrações penais insignificantes; não ter sido o agente beneficiado nos 5 (cinco) anos anteriores por acordo de não persecução penal, transação penal ou suspensão condicional do processo; e, finalmente, não se cuide de crimes cometidos no âmbito de violência doméstica ou familiar, ou praticados contra a mulher por razões da condição de sexo feminino7.


Disso deflui, de forma inexorável, o estabelecimento claro de critérios objetivos específicos e perfeitamente delineados, os quais deverão ser obrigatoriamente ponderados.


Na sequência o dispositivo legal preconiza a possibilidade da concretização do instituto, desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime.


Presentes, pois, critérios de ordem subjetiva, os quais não estão suficientemente esclarecidos, sendo em verdade “abertos”, de caráter essencialmente abstrato.


Pergunta-se: no que consistiria a consideração de que a proposta de não persecução penal mostra-se necessária e suficiente para a reprovação e prevenção do crime, ou não atende a tais condições?


O estabelecimento do conceito, por uma leitura literal, mostra-se unicamente nas mãos do membro do Ministério Público?


Como consequência, cada profissional, na unidade em que atua, faria um juízo próprio e personalíssimo sobre o cabimento do instituto?


Reside aí o primeiro problema, pois teríamos estabelecido um aspecto não previsto em lei – arbítrio8 do integrante do Parquet –, o qual pode vir a ensejar tratamento díspar às pessoas denunciadas por prática criminosa que admita a mercê legal e preencham as premissas objetivas.


Isto repercute de tal forma que atenta contra o princípio da igualdade previsto no art. 5º, caput, da Constituição Federal e, por analogia, ao princípio da indivisibilidade das ações penais de iniciativa pública e privada.


Explica-se.


Sendo todos iguais perante a lei, não se pode admitir que pessoas que se encontrem em situações idênticas ou similares venham a receber tratamento penal diferenciado. Tendo sido a elas reconhecido o direito de não se submeter ao processo criminal, mediante a satisfação de requisitos objetivos e submissão a condições, incogitável a possibilidade de diferenciação sem razão legal própria e definida. Neste contexto, tem-se que a condição de permitir a cada promotor de justiça a possibilidade de oferecer ou não o ANPP representa afronta à segurança jurídica (já tão em falta no âmbito criminal).


Ademais, a aplicação analógica antes mencionada tem em conta o princípio da indivisibilidade da ação penal pública, que significa que não é dado ao Ministério Público escolher as pessoas contra quem buscará a deflagração da ação penal, devendo direcioná-la contra todos que infringiram a lei - o que também acontece em se tratando de ação penal de iniciativa privada, diga-se, posto não ser possível à vítima (querelante), optar por quais pessoas pretende incriminar por crime cometido.


Em tal conformidade, também falece ao representante ministerial, no momento em que se depara com situação que preencha os requisitos objetivos, optar por negar o direito ao acordo de não persecução penal ao seu livre talante.


Deve-se ter presente, ainda, que o Ministério Público enquanto instituição, é uno e indivisível9 10, soando absolutamente ilegal admitir-se que a aferição da condição subjetiva do denunciado fique adstrita ao bom ou mau humor do representante ministerial, à sua adesão ou não à ideia contida no instituto, a simpatia ou antipatia à figura do acusado.


Logo, temos que os requisitos objetivos esgotam a matéria, uma vez que consideram as condições para a proposição da ação penal, a pena passível de aplicação, a admissão formal e circunstancial da prática criminosa pelo beneficiado, tratando igualmente das causas impeditivas, claramente identificadas e relacionadas ao passado do agente, o recebimento de benefício igual ou assemelhado nos 5 (cinco) anos anteriores, e a natureza do crime.


Permitir-se que outros obstáculos sejam considerados a bel prazer pelo integrante do Ministério Público é desconsiderar a mens legis, é atribuir-se ao Promotor de Justiça, ou Procurador do Ministério Público Federal, o direito de acrescer exigências não estabelecidas pelo Congresso Nacional, competente para legislar acerca de matéria processual penal. Implica, pois, em invasão de atribuições.


Tal reflexão já deixa claro que a consideração de requisitos de ordem subjetiva deva ser afastada.


Competirá ao Ministério Público, portanto, observar a presença dos pressupostos necessários ao oferecimento da peça acusatória, a ausência personalíssima dos impeditivos expressamente elencados em lei, e constatando estarem todos esses aspectos satisfeitos, não lhe restará opção diversa do oferecimento da proposta de acordo.


Sobre o assunto é conveniente assentar:


A instituição do Ministério Público é função essencial à Justiça na defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, como diz o art. 127, da Constituição Federal de 1988. Portanto é uma voz que não pode se calar na busca do cumprimento das funções que lhe incumbem. Nesse contexto, a crítica possível ao Ministério Público refere-se à eventual ofensa à ordem jurídica, regime democrático e os interesses sociais e individuais indisponíveis, sendo que a limitação estaria mais na ineficiência do cumprimento do seu mister do que em uma atitude comissiva concreta. Diante disso, dentro da temática do presente estudo, um poder atribuído ao Ministério Público não é superior à Constituição que o determina, nem mesmo à ordem jurídica que a segue e à qual deve obediência. É a instituição Ministerial uma das potências para o ato da Justiça e não da Injustiça ou ilegalidade. Nesta esteira não pode ou deve romper, por falta de limitação imediata específica e expressa, a fronteira da legalidade11.


Veda-se ao representante ministerial, portanto, usar de critérios de seletividade não definidos na legislação específica.


Sendo, pois, uma obrigação imposta ao Ministério Público, é ao mesmo tempo um direito subjetivo do inculpado.


Encontrando-se a sua situação enquadrada dentre os crimes que admitem venha a ser beneficiado; dispondo-se a assumir de maneira clara e formalizada sua culpa; e, não registrando em sua folha pessoal, como na própria conduta tida por criminosa, obstáculo ao benefício, deve receber a oferta - e se ela não ocorrer, pode buscar o reconhecimento do seu direito junto ao órgão superior, consoante estabelece o §14 do art. 28-A do Código de Processo Penal.


Respondendo a essa polêmica, Aury Lopes Júnior assinala entender que preenchidos os requisitos legais – se trata de direito público subjetivo do imputado, um direito processual que não lhe pode ser negado, embora advirta que a coautora do artigo em que há discussão sobre o tema, Higyna Josita, entende que não é direito subjetivo, mas faculdade do MP12.


Não se discute que o assunto desperte opiniões antagônicas, o que se mostra normal na área jurídica, ainda mais em se tratando de instituto introduzido há apenas 5 (cinco) meses.


Mas o que se pode afirmar, e de maneira categórica, é que a discricionariedade do Ministério Público é regulada, tem limites prévia e claramente estabelecidos. A consequência que disso decorre é que não poderá se negar, sem motivação legal, a reconhecer o direito do denunciado em admitir sua culpa e submeter-se a condições para resolver sua pendência criminal.


Trata-se, reafirmamos, de uma expectativa que deve ser consagrada em direito, embora não vincule o denunciado à aceitação, posto ser-lhe lícito concordar com a proposição e submeter-se às cláusulas estabelecidas, como recusá-la, dispondo-se a enfrentar a ação penal.


____


Referências


1 Art. 72 a 74, que tratam da conciliação, e art. 76 e §§, que tratam da transação penal, todos da Lei. 9.099/26.09.1995


2 Art. 89 e §§ do mesmo diploma legal.


3 “O plea bargaining é instituto de origem na common law e consiste numa negociação feita entre o representante do Ministério Público e o acusado: o acusado apresenta importantes informações e o Ministério Público pode até deixar de acusá-lo formalmente”. (GOMES, Luiz Flávio. O que se entende por plea bargaining. JusBrasil. Disponível em https://professorlfg.jusbrasil.com.br/artigos/121924834/o-que-se-entendepor-plea-bargaining, acesso em 23 de maio de 2020.


4 “O Código de Processo Penal de 1941 deita raízes notoriamente autoritárias, pois foi inspirado na legislação processual penal italiana (Código Rocco) que vigia nos anos de 1930, época do regime fascista liderado por Benito Mussolini. Com efeito, tal texto normativo “ […] foi parido sob a égide de um outro momento sociopolítico e de estrutura altamente autoritária, além de mal construído tecnicamente”, cfe. CHOUKR, Fauzi Hassan. Garantias constitucionais na investigação criminal. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 5, citado por KNOPFHOLZ, Alexandre. A necessária – e já tardia – constitucionalização do processo penal. Artigos Direito Criminal (Escritório Professor René Dotti). Disponível em https://dotti.adv.br/necessaria-e-ja-tardiaconstitucionalizacao-do-processo-penal-2/, acesso em 23 de maio de 2020.


5 Art. 28-A, § 6º do CPP, com a redação da Lei 13964/2019.


6 Aury Lopes Júnior e Higyna Josita deixaram isto bastante claro no artigo Questões polêmicas do acordo de não persecução penal (Consultor Jurídico), disponível em https://www.conjur.com.br/2020-mar-06/limite-penal-questoes-polemicas-acordo-naopersecucao-penal acesso em 23 de maio de 2020, ao elencar os seguintes questionamentos: 1ª) Cabe ANPP para processos em curso na data da entrada em vigor da Lei n. 13.964/19, com denúncias já recebidas, mas sem sentença prolatada? 2ª) Cabe ANPP aos processos de ação privada? 3º) Quando a fração da causa de aumento ou de diminuição a incidir sobre o mínimo da pena em abstrato for variável, aplica-se a maior ou a menor fração para aferir se o agente faz jus ao ANPP? 4º) Em caso de descumprimento do ANPP, a confissão feita pelo investigado poderá ser usada contra ele durante o curso do processo que a caso venha a surgir?


7 Art. 28-A, §2º, do CPP, com a redação da Lei 13964/2019.


8 Aqui entendido como vontade unilateral, não dependente de regramentos ou limites. 11 Superior Tribunal de Justiça. RECURSO ESPECIAL Nº 1.582.107 - RN (2016/0041347-0) Relator: Min. RIBEIRO DANTAS, j. 1º/08/2018.


9 Supremo Tribunal Federal. ACO: 2959 RJ - RIO DE JANEIRO 0002340- 66.2016.1.00.0000, Relator: Min. RICARDO LEWANDOWSKI, j. 16/03/2017


11 OLIVEIRA, Danilo Fernando. Os limites da transação penal. JUS.COM.BR. Disponível em https://jus.com.br/artigos/66563/os-limites-da-transacao-penal, acesso em 23 de maio de 2020.


12 Questões polêmicas do acordo de não persecução penal (Consultor Jurídico), disponível em https://www.conjur.com.br/2020-mar-06/limite-penal-questoespolemicas-acordo-nao-persecucao-penal acesso em 23 de maio de 2020.


____


Online no site Migalhas: https://www.migalhas.com.br/depeso/327866/acordo-de-nao-persecucao-penal-direito-subjetivo-do-inculpado

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